terça-feira, 5 de maio de 2009

Vender para o Governo: oportunidades e desafios

O Governo Federal é um grande consumidor de TI. Um enorme cliente, na verdade. Hoje não é possível precisar a despesa com TI na Administração Pública Federal, mas estima-se que em 2008 o número tenha ficado próximo de R$ 7 bilhões. Esta dificuldade preocupante de identificar claramente as despesas com tecnologia, aliás, já foi objeto de um acórdão do Tribunal de Contas da União, que recomendou a criação de elementos de despesa próprios para a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2009. Atualmente as despesas com TI são lançadas em diversa rubricas, o que dificulta a consolidação dos dados.

Se seguirmos o paradigma econômico da oferta e demanda, será fácil concluir que quem está dentro deste mercado não quer sair e quem está fora quer entrar, correto? Nem tanto. Quem conhece e trabalha no intrincado mercado de fornecimento de bens e serviços de TI para o governo sabe que os ciclos de vendas são longos, os investimentos são altos e as incertezas são constantes. O ano começa, na prática, em março, mas a maioria dos negócios é realizada no último trimestre. O orçamento é frequentemente contingenciado, palavra pomposa para “desculpe-me, aquele projeto que você vem trabalhando há dois anos não vai mais sair” . Cada eleição, mudança ministerial, alteração na presidência de um tribunal ou de uma estatal é na maioria das vezes seguida de uma dança de cadeiras nos cargos de gestão de TI, o que constantemente prejudica a continuidade dos projetos. Elaborar um pipeline ou forecast de negócios é um exercício que envolve uma boa dose de futurologia. A revenda ou integrador, espremida entre o fabricante e o cliente, precisa ter jogo de cintura para adaptar-se e navegar entre as cobranças do fornecedor e a imprevisibilidade do governo.

O Pregão Eletrônico, hoje a modalidade de licitação mais utilizada, se por um lado democratiza o acesso aos fornecedores, por outro reduz enormemente as margens. O governo não se cansa de alardear as economias que tem feito com as compras via Internet. O Ministério do Planejamento anunciou que no primeiro semestre de 2008 o Pregão Eletrônico representou 83% das aquisições de bens e serviços comuns e trouxe uma economia de R$ 1,8 bilhão para os cofres do governo. Em 2007 a economia foi superior a R$ 3 bilhões.

Mas é raro alguém vir a público para falar do lado B. O Pregão Eletrônico permite a participação de aventureiros, oportunistas e outros que agem por inequívoca má-fé. Isto porque raramente é exigida qualquer qualificação prévia do participante. Basta cadastrar seu preço e entrar na disputa. É comum encontrar empresas que participam sem que tenham qualquer possibilidade de entregar o que está sendo contratado. Como os concorrentes não sabem com quem estão disputando, reduzem suas margens a limites de altíssimo risco para se manter competitivos. Neste momento, a tentativa de recuperar os investimentos de pré-venda, custos com capacitação de pessoal e manutenção de uma boa infra-estrutura para atendimento ao cliente é abandonada. Passa a brigar-se por uma margem irrisória, qualquer que seja. O governo vibra com a economia, ignorando a regra básica do ganha-ganha, única maneira sustentável de se fazer negócios. Quando o vencedor oportunista não consegue entregar o objeto da licitação, o cliente perde tempo, pode perder o orçamento e ainda se vê obrigado a conduzir um processo administrativo. Além disso, diversas empresas utilizam-se de software (robôs) para dar entrada mais rapidamente em seus lances, diminuindo as chances dos concorrentes que fazem a entrada manualmente. Se é legal ou não, ninguém ainda respondeu, mas o governo parece não se importar.

A Lei Complementar nº 123/2006, que beneficia as Micro Empresas e Empresas de Pequeno Porte na participação em licitações públicas tem seus méritos e suas fragilidades. Não são raros os casos de empresas que se aproveitam da lei para obter vantagens indevidas. Mas este é um assunto polêmico e merece uma discussão mais detalhada. Prometo voltar ao tema em outra oportunidade.

O governo, como regra, compra muito e compra mal. Há ilhas de excelência, tão ou mais competentes na contratação de TI quanto grandes organizações privadas, mas ainda são exceções. Pesquisa do TCU realizada com 255 órgãos e entidades públicas federais traz números tão esclarecedores quanto alarmantes:

59% não possuem um planejamento estratégico de TI
67% não possuem um comitê diretivo sobre ações e investimentos em TI
57% não possuem uma carreira específica de TI
63% do pessoal de TI não possui formação específica na área
64% não possuem uma política de segurança da informação
88% não possuem um plano de continuidade de negócios
48% não possuem procedimentos de controle de acesso
64% não possuem uma área específica para lidar com segurança da informação
74% não possuem gestão de acordos de níveis de serviços contratados externamente

Estes são só alguns números. O material completo pode ser encontrado com uma simples pesquisa na Internet por “Auditando Governança de TI na Administração Pública Federal”. O importante é que olhando para estes resultados, podemos levantar algumas considerações. Uma: se fosse uma grande empresa privada, já teria quebrado. Outra, mais otimista: há um oceano de oportunidades aguardando empresas sérias que se proponham a fazer um trabalho construtivo, e não apenas vender de forma oportunista ou eventual.

O governo não está parado, claro. Há inúmeras iniciativas no sentido de fazer com que os investimentos em TI possam cada vez mais traduzir-se em benefícios reais para as instituições e para a sociedade. O TCU, por sua vez, tem sido atuante e rigoroso na fiscalização, agindo ainda como órgão consultivo. Transparência, agilidade nos processos, acompanhamento de níveis de serviço, garantia de competitividade são alguns dos itens desta agenda. O Ministério do Planejamento publicou em 2008 as Instruções Normativas 02 e 04, que trazem grandes mudanças ao modelo de contratação de serviços de TI, alterando radicalmente algumas regras antes vigentes.

Vender para o governo continuará a ser um desafio. Para quem parar no tempo, menos negócios. Para quem se adaptar, mais oportunidades.

ME/EPP nas licitações: como destruir uma boa idéia

A Lei Complementar 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte) define, entre outras matérias, tratamento diferenciado e favorecido às ME/EPP na participação em licitações públicas. O espírito da lei é louvável e realmente democratiza o acesso ao mercado de compras governamentais, além de ampliar a concorrência, incentivar a geração de emprego e distribuição de renda e, em última instância, garantir melhores condições de aquisição à administração pública.
Tudo isto seria perfeito em mundo ideal. Mas como na prática a teoria é outra, não poderia deixar de ser diferente neste caso. Na ânsia de ampliar o leque de concorrentes e promover uma carnificina entre os fornecedores em busca do menor preço, o governo deixa brechas que vêm sendo amplamente exploradas pelas empresas, seja por má-fé ou por mero senso de oportunidade (ou oportunismo, se preferir).
Em resumo, são os seguintes os benefícios das ME/EPP nas licitações:

1-A exigência de comprovação de regularidade fiscal será feita apenas na assinatura do contrato. Durante a fase de habilitação, caso haja restrições fiscais, será assegurado o prazo de dois dias úteis, prorrogáveis por igual período, para a regularização.
2-Será assegurado, como critério de desempate, preferência de contratação para as ME/EPP. Serão consideradas empatadas as propostas apresentadas pelas ME/EPP que sejam iguais ou até 10% superiores à proposta mais bem classificada. Na modalidade pregão (presencial ou eletrônico), o intervalo é de 5%. Ocorrendo o empate nestes termos, a ME/EPP poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame.
3-Possibilidade de realização de licitações em que a participação será exclusivamente de ME/EPP, no caso de contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00.
4-Exigência dos licitantes de subcontratação de ME/EPP em não mais do que 30% do total licitado, assim como o estabelecimento de cota de até 25% do objeto para contratação de ME/EPP em certames para a aquisição de bens e serviços de natureza divisível.

Vamos nos ater à questão da comprovação de regularidade fiscal e ao critério de desempate, temas que têm gerado mais polêmica e controvérsia nas licitações, principalmente nos pregões eletrônicos.

Inicialmente, é importante ressaltar que a Lei Complementar 123/2006 não fere o princípio da isonomia entre os concorrentes, visto que a razão deste princípio não é garantir condições de participação igualitárias a todos os licitantes, mas sim tratar de forma diferenciada empresas que se encontram em situação diferenciada. Neste sentido, não há ressalvas. No entanto, ao permitir que ME/EPP participem de licitações sem comprovar a regularidade fiscal, devendo fazê-lo apenas na assinatura do contrato, pune as demais empresas que se esforçam por manter sua vida fiscal e suas certidões em dia, ao colocá-las em desvantagem perante o concorrente que não teve esta preocupação ou esforço.

Quanto ao critério de desempate, as críticas são ainda mais severas. Para melhor ilustrar, tomo emprestado um fragmento de artigo de Thiago Dellazari Melo, extraído do site “Jus Navigandi”:
“Pergunta-se: Por que razão a pequena empresa ofertaria lance inferior ao primeiro colocado se teve oportunidade de fazê-lo e não o fez? Teoricamente, no caso do Pregão, as empresas disputam preços até o limite de cada uma delas. A não ser que a pequena empresa abstenha-se de efetuar lances desde o início da disputa de modo a permanecer com sua proposta em até 5% do lance vencedor. Assim, o licitante detentor do melhor lance não encontrará adversários na disputa e será o vencedor da fase de lances. No entanto, a pequena empresa será convocada para o desempate, segundo o Estatuto, e nesta situação apresentará nova proposta. Observa-se uma flagrante burla aos objetivos do certame licitatório (grifo meu), posto que não há disputa de preços em virtude da conduta da pequena empresa de evitar a contenda, restando unicamente ao Pregoeiro a adoção de providências imediatas para coibir este tipo de prática, de forma a sempre buscar privilegiar no Pregão a disputa entre os licitantes.”

Este procedimento é mais comum que se possa imaginar. Empresas que não disputam o pregão de fato, mas simplesmente ficam “encostadas” 5% acima do melhor lance, aguardando meramente o final da etapa de lances para que possam ofertar seu preço final, ainda que apenas R$ 1,00 abaixo do melhor lance. Não é uma disputa, é um jogo desigual. E a ME/EPP frequentemente terá a carta maior.

Outras situações são ainda mais graves. Há casos em que empresas enquadradas como ME/EPP participam de licitações sem qualquer interesse (ou capacidade) de entregar o objeto licitado, mas sim de oferecer um “acordo” ao segundo colocado e desistir do certame, simplesmente não entregando os documentos para habilitação. Extorsão, para dizer o mínimo. Como as sanções são raras, senão inexistentes, é uma prática tão desonesta como lucrativa. A impunidade lutando a favor da deslealdade. Outras atuam como “coelhos”, simplesmente para forçar a redução dos preços. Há ainda “laranjas”, ME/EPP criadas por empresas que não podem usufruir dos benefícios da Lei Complementar, atuando em benefício destas últimas. Algumas são criadas exclusivamente para ganhar um negócio, às vezes ultrapassando de imediato o limite de faturamento anual de R$ 240.000,00 para ME ou R$ 2.400.000,00 para EPP.

O Ministério do Planejamento divulgou no Comprasnet, site oficial de compras do Governo Federal, que a participação das ME/EPP nas aquisições aumentou de R$ 2 bilhões em 2006 para R$ 9,5 bilhões em 2007, em função da entrada em vigor da Lei Complementar 123/2006, aliada às facilidades de participação por meio do pregão eletrônico. O balanço também mostra que as ME/EPP forneceram quase R$ 8 bilhões (48%) dos R$ 16,5 bilhões contratados por pregão eletrônico no Governo Federal.

Os números são incontestáveis, mas fica uma pergunta: é pecado crescer e tornar-se uma média ou grande empresa? Em um cenário de crise financeira e ameaça de recessão, o estabelecimento de políticas que beneficiem o mercado como um todo, e não apenas alguns segmentos em detrimento de outros, seria não só mais saudável como também sustentável a longo prazo.

Em tempo: Minha primeira empresa, como milhares de outras, começou apenas com os sócios, uma boa ideia , uma sala de poucos metros quadrados, quase nenhuma estrutura e sem funcionários. Portanto este não é um libelo contra as ME/EPP, mas sim um chamado à ação do governo no sentido de coibir as práticas abusivas que têm maculado o espírito da lei.

Fontes:
Jus Navigandi - As licitações públicas e o tratamento diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte - Lei complementar nº 123/2006 - Thiago Dellazari Melo

Jus Navigandi - Repercussões do Estatuto das Micro e Pequenas Empresas nas licitações públicas - Thiago Dellazari Melo